
Pájaros, 1953
Hoje não, mas amanhã vou ter tempo para pensar em sair do tempo. Deixar de estar suspenso no cais, acenando aos barcos que de vela panda levam o anseio de quem ficou e deixam no horizonte a saudade de quem os vê partir e de braço estendido implora em silêncio que o levem até onde nunca soube saber sonhar.
Hoje não, mas amanhã vou pensar em deixar de ouvir o vai e vem da água suja batendo nas paredes viscosas do cais, esquecer o rodopio das tainhas que no lodo em que se reproduzem esperam o dia em que uma maré vinda de um “mar sem horizontes precisos” lhes revele uma água leve, límpida, longe do limbo dos dias.
Hoje não, mas amanhã vou aprender a caminhar sobre as águas e abrir horizontes nas estreitas paredes das pequeninas ilusões com que enchi minhas horas e servil agradeci por me terem deixado embaciar as janelas de uma existência minha só por fora e através de um espelho que nunca foi meu.
Hoje não, mas amanhã, com a serenidade dos pássaros, vou ter tempo para sair do tempo.

Como ficcionista publicou: “Sobre outra coisa ainda” (13 short stories), Coleção LPF 20, X11, Edições esgotadas, Porto 2018; “Neste sonho que sou de mim”, Coleção LPF 20, X1, Edições esgotadas, Porto 2020. Como se de outro ela fosse, Edições esgotadas, Porto 2023
Fotografía: Gabriel Moralez