
Gato azul claro y oscuro, s/f
Quando eu cheguei devia ser tarde. A mesa tinha sido levantada e a sala arrumada. O que havia para levar levavam. E o que não cabia na sua ambição deixavam para os descendentes e amigos que tinham descendentes e conhecidos que também tinham descendentes, amigos e conhecidos. No chão, por onde passavam, ficavam restos que sombras obedientes, incapazes de ver para além das dilatadas narinas da sua subserviência, agradeciam, como alegres cachorrinhos abanando a cauda.
Gato roçando a parede, rasgado por dentro, insubmisso por fora, aproximei-me, julgando ver entre os despojos dos restos deixados no chão migalhas que de alguma maneira me permitissem iludir a fome de viver com a dignidade dos pássaros que trazia comigo e poder olhar as nuvens e o cetim azulado do céu sem receio de ficar aturdido. Ao perceberem a minha intenção, as sombras, que também tinham descendentes, amigos e conhecidos, olharam-me de soslaio e crentes em algum sortilégio recolheram o pó das migalhas esparso no chão e em azedo murmúrio fecharam a sala à curiosidade dos gatos.

Como ficcionista publicou: “Sobre outra coisa ainda” (13 short stories), Coleção LPF 20, X11, Edições esgotadas, Porto 2018; “Neste sonho que sou de mim”, Coleção LPF 20, X1, Edições esgotadas, Porto 2020. Como se de outro ela fosse, Edições esgotadas, Porto 2023
Fotografía: Gabriel Moralez