
Mujer en un sofá, 1919
Por cima da cabeceira da cama, a imagem do Cristo, olhar sereno, coração latejante, interrogava-me, quando, altas horas da noite, eu entrava no quarto e em silêncio acendia o candeeiro da mesinha de cabeceira para não interromper o concerto que a tia Júlia, esparramada no sofá da sala, oferecia a todo o prédio, roncando com uma liberdade de alma que só o sono lhe permitia. O Cristo, talvez por não tolerar o cheiro a fumo e a álcool, perguntava-me que destino seria o meu se assim continuasse e outras tantas perguntas que se fazem quando se pensa que a vida é um sapato único que serve a cada pé. Eu amaldiçoando os roncos e evitando aquele olhar serenamente inquisidor, enfiava a cabeça debaixo do travesseiro e só acordava no outro dia com o cheiro sensual do café e o sorriso no pão torrado que a tia Júlia me regalava.
Um dia a tia Júlia tropeçou no tapete, bateu com a cabeça na porta aberta do armário e foi parar ao hospital, antes de a levarem para uma casa onde quase todos recordavam o passado para esquecer o presente. Estranhou a casa e quem nela vivia e decidiu viajar sem regresso, talvez a pensar no sofá onde tantas noites em paz adormeceu.
Entro agora no quarto, acendo o candeeiro e amaldiçoo a porta aberta do armário, a casa para onde a levaram, interrogo e fico à espera da resposta do Cristo. E com a cabeça debaixo do travesseiro, dói-me e sufoca-me a saudade dos roncos, do café e do sorriso que a tia Júlia punha no pão que me oferecia.

Como ficcionista publicou: “Sobre outra coisa ainda” (13 short stories), Coleção LPF 20, X11, Edições esgotadas, Porto 2018; “Neste sonho que sou de mim”, Coleção LPF 20, X1, Edições esgotadas, Porto 2020. Como se de outro ela fosse, Edições esgotadas, Porto 2023
Fotografía: Gabriel Moralez