Gente que Cuenta

Uma latrina e um mictório,
por Alfredo Behrens

 
Marcel Duchamp Fountain 1917, replica 1964
Marcel Duchamp
Fountain
1917, replica 1964

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      Hoje encontrei uma latrina em um lugar diferente. Estava na rua, em frente a um bar. Não havia ninguém sentado nela. Ela simplesmente estava lá. Se não fosse pelo fato de Duchamp ter morrido há décadas, eu poderia até pensar que era uma das suas provocações, como o mictório que ele chamou de Fonte.

Mas a verdade é que chamar um mictório de Fonte era mais engraçado. Talvez esse não devesse ser o motivo pelo qual Duchamp queria ser lembrado, mas ele não escapou disso. Seu talento ia além de sua capacidade de brincar. Mas sua capacidade de questionar, criticar e ridicularizar o status quo, como no caso do mictório que ele chamou de Fonte, é o motivo pelo qual nos lembramos dele.

Poucos artistas teriam a inteligência de Duchamp para minar as convenções. Não se tratava apenas de apresentar o mictório como uma obra de arte em uma exposição em 1917. Foi também a alusão ao mictório como uma fonte. Valeu também a assinatura em preto, sugerindo que o autor era R. Mutt.

Na realidade, Duchamp havia comprado o mictório de um fornecedor conhecido pelo nome de Mott, mas Mutt lhe convinha mais porque fazia alusão à história em quadrinhos Mutt e Jeff, dois personagens que, mesmo por causa de sua diferença de estatura, dificilmente apareceriam juntos, como o mictório em uma exposição de arte. Diz-se até que o R de R. Mutt seria uma alusão a Richard, que em francês era comumente usado para se referir a alguém pessimista, como aqueles que investiam em arte. Na verdade, havia várias camadas de ironia na apresentação do mictório para a exposição.

A Fonte de Duchamp foi rejeitada, confirmando assim que mesmo uma entidade artística de Nova York ainda não estava pronta para aceitar a arte de vanguarda. Aqueles que rejeitaram a fonte argumentaram que “a fonte pode ser um objeto muito útil em seu lugar, mas seu lugar não é uma exposição de arte e não é, por definição, uma obra de arte”. Será que isso também se aplica à latrina que vi hoje?

Alfredo Behrens Atril press

Alfredo Behrens alcançou o grau de Ph.D. pela Universidade de Cambridge. Ele ensinou Liderança nas melhores escolas de gestão e foi publicado ou premiado por Harvard, Princeton e Stanford. Alfredo tem quatro filhas e, com a sua mulher Luli Delgado, mora no Porto, Portugal, desde 2018. Alguns dos seus livros podem ser adquiridos através da Amazon.
alfredobehrens@gmail.com

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