Gente que Cuenta

Estranhos que se falam, por Alfredo Behrens

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Cyril Power
Tren de línea distrital ocupado, 1934

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O metrô, como um elevador, parece ser uma máquina de inibição Embora em ambos os passageiros estejam algo ensardinhados, as pessoas se ignoram mutuamente. Isso em muitos países, não em Portugal. O português é capaz de entabular uma conversa com quem não conhece, mesmo que saiba que a conversa ficará sem continuação porque seria raro eles voltarem a se encontrar.
Sabemos que o português ganha pouco, mas onde todos ganham pouco não há abismos sociais. Tal vez por isso o povo português se sente irmão do seu colega passageiro de metrô, e por isso pode iniciar, à menor deixa, uma conversa entre iguais. Ilustro, apenas com um caso, mas já vivi vários semelhantes.
Estava sentado numa área do vagão do metrô dessas em que dois pares de poltronas ficam uma frente a outra. A distância entre os dois pares, somada ao barulho do metrô rolando, não facilitava a conversa entre pares de poltronas. Frente a mim havia duas mulheres em silêncio, cada uma absorta em seu mundo. Esses mundos seriam muito diferentes porque haveria uma geração entre elas. A mais velha, nos seus cinquentas, tinha um ar gasto, sofrido, com o cabelo desarrumado e quando falou mostrou que lhe faltavam alguns dentes. A mais nova estava muito maquilhada, tinha um piercing visível e muitas tatuagens, uma inclusive entre o rego dos seios, aparentes num decote pronunciado.
Sendo portuguesas, e apesar da distância geracional e social, para elas conversarem só faltava um deflagrador, que veio no que parecia ter sido um erro do condutor. Pelo alto-falante uma paragem foi anunciada num volume mais alto do que as anteriores. Foi o suficiente para que as duas mulheres começassem a conversar. Não conseguia ouvir tudo o que diziam, mas falaram até de férias. A mais velha nunca tinha tirado férias, a mais nova não via a hora de se picar para a praia. A mais velha desceu numa paragem, a mais nova algumas paragens mais tarde, antes me explicou que a outra senhora era como os pais dela, que também nunca haviam tomado férias.

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Alfredo Behrens  é doutor pela Universidade de Cambridge, leciona Liderança para as escolas de negócios da FIA em São Paulo e IME em Salamanca, e é Presidente do Conselho Estratégico da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, onde reside.
Alguns de seus livros podem ser adquiridos na Amazon.
ab@alfredobehrens.com

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