
Mesa e livros, 1962
Comprei hoje um livro e logo me arrependi. A capa era tão bonita que imaginei encontrar naquelas páginas um pouco da vida que nunca vivi. Eram palavras bem arrumadas de doutores em inomináveis ciências e invejadas vidas, vencedores de prémios de infinito prestígio, merecedores de fotos e artigos nos jornais, com milhares e milhares de seguidores nas redes sociais. Como nada entendi, tentei deixá-lo na esplanada do café onde antecipadamente me tinha preparado para espalhar sobre mim as palavras, como quem goza o prazer de esfregar pelo antebraço a pequena amostra gratuita do perfume que sabe não poder comprar.
Na mesa ao lado conversavam. Num gesto rápido, o rapaz chamou a minha atenção para o livro que ali tencionei deixar. Ofereci, mas não queria ficar com ele, não tinha tempo para ler, porque o tempo não tinha tempo para ele. Como insisti, encolheu os ombros e de voz segura afirmou que os livros são o refúgio de quem nunca viveu. A pensar que talvez tivesse razão, resolvi deixá-lo no supermercado entre pacotes de arroz, latas de feijão, açúcar e garrafas que prometem momentos etéreos. Olhei à direita e à esquerda e disfarçadamente afastei-me do corredor. Na caixa automática, duas pessoas mostravam ao olho da máquina o que levavam para o jantar. Quando chegou a minha vez, e já pronto para sair, um funcionário firme e sisudo agarrou-me no braço estendeu-me o livro e então eu disse: “Fique com ele, não tenho tempo para ler, os livros são o refúgio de quem nunca viveu”.

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