Gente que Cuenta

A ponte,
por Fernando Carmino Marques

Maurice de Vlaminck Atril press
Maurice de Vlaminck
A ponte de Chatou, 1912

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      Passo a ponte esperando deixar para trás o passado e uma vez mais me engano. É tão bom ver a realidade como quero e não como ela é, quando é e se é, porque a realidade é tão irreal como outra coisa qualquer, digo para mim depois de verificar que o passado também atravessou a ponte. Não é que não tenha vontade de chegar ao outro lado da ponte e acenar para o estranho que fui, quando o fui e se é que o fui. Mas, como um par de botas pesadas pela chuva e pela lama, trago o passado comigo à espera de que ele se converta em sol e a lama em poeira desfeita pelo caminho. São tantas as vezes que dou por mim a pensar se alguma vez conseguirei realmente passar a ponte que chego a duvidar se o meu futuro não é já o passado do meu presente.  As viagens que um dia farei, as prometidas decisões que todas as noites me afligem a mente e não deixam dormir, de manhã, quando abro a janela, parecem sonhos num quarto sem luz. E se de cabeça virada para baixo quase alcanço a outra margem, a ponte parece não ter fim e ali parado no meio de todas as minhas inadiáveis decisões debruço-me sobre o rio que passa.

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Fernando Carmino Marques é doutor em letras pela Universidade de Paris IV – Sorbonne. Publicou vários estudos sobre temas e autores portugueses e brasileiros, dos séculos XVI, XIX e XX. Traduziu e editou o estudo inédito de Pierre Hourcade sobre a poesia de Fernando Pessoa, A Mais Incerta das Certezas, Itinerário Poético de Fernando Pessoa (Coleção “Ensaios” sobre Fernando Pessoa, Tinta-da-china, Lisboa, 2016). Como ficcionista publicou Sobre outra coisa ainda (13 short stories) 2019 e Neste sonho que sou de mim, contos, 2021.
carmino@ipg.pt

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