
O Portão da Memória, 1864
De minha mãe o ter dado a vida por mim.
De meu avô Ângelo, brevemente entrevisto num domingo frio de abril, uma moeda para comprar guloseimas.
De minha bisavó Adriana o cheiro das maçãs no forno, durante as férias de verão, depois de uma viagem em que a estrada parecia não ter fim e os campos eram verdes, aloirados e o improviso das cigarras enchia a alma de sonhos.
De meu pai a dor de nunca o ter sido e a distância que nenhum gesto ou palavra pode apesar de tudo fazer esquecer.
De meu tio Gabriel a cumplicidade, o carinho, a cara ao vento sobre a motorizada Famel e os momentos em que nada se diz e tudo se sente. Depois, no banco de trás do Wolkswagen 1300 S, azul, o nariz encostado à janela, acenando para que todos vissem a minha alegria.
Da cidade onde nasci a humidade das paredes, a irreprimível vontade de respirar, romper o sufoco da rua, o degredo do bairro. Saciar a sede de além que não cabe em nenhuma existência. Saber como o mundo é grande e tão pequenos os sonhos que sabemos poder realizar.
Da escola, entre nomes e datas esquecidos, a espada de papel com que julguei, cavaleiro sem armadura, enfrentar o mundo, ignorando o poder da chuva.
Do trabalho, emprego de sobrevivência que se torna forma de estar e ser, a consciência do mergulho na dócil quotidiana mediocridade, quando não mesquinhez, sobreposta à inteligente e generosa sinceridade de alguns.
Do amor, o que recordo não sei se o sonhei.
Dos livros o refúgio, o desejo de ser uma daquelas personagens com destinos que não cabem nas palavras por mais precisas que sejam aos ouvidos de quem as lê e diz. Foram tantas as vidas e os nomes que invitei que me perdi sem me achar em parte alguma. Só nelas me encontrei. Só por elas senti que valia a pena ser rio e tentar agarrar a cor do vento.

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