Gente que Cuenta

Primeira luz do dia, por Fernando Carmino Marques

Almada Negreiros Atril press
Almada Negreiros (1893-1970)
Álvaro de Campos (pormenor). 1958.
Mural Fac. Letras de Lisboa.

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Nem sempre estamos conscientes da importância de um evento quando o vivemos. Seja porque a nossa atenção em determinada situação nos trai, seja porque estar deveras presente em cada momento nos pareça demasiado cansativo, senão impossível, quantas vezes de forma inconsciente desvalorizamos aquilo que só com o tempo saberemos, nesse tribunal pessoal chamado memória, reconhecer a sua importância. Entretanto ficamos na margem contemplando o rio que flui em direção ao infinito.

Há eventos inesperados capazes de nos transformar. Reconhecer que se gosta de alguém é um evento tão importante como a sua perda. Dar asas a um sonho, sentir secar em nós a fonte da inveja e do rancor, encolher os ombros a um desejo de vingança é tão importante com dar a mão à criança que sabemos confiar em nós.

Encontrar um livro, um poema, uma melodia, uma voz que nos reconforta, quando nos sentimos perdidos em um daqueles cruzamentos que a vida faz questão de pôr a nossa força interior à prova, para ver se sabemos cair e guardar a pedra em que tropeçamos.

Há eventos que esperamos ansiosos, desejando que os dias sejam minutos e depois descobrimos que não passam de bolas de sabão.

Outros há que a ilusão nos oferece e depois sorri perante a nossa incurável necessidade de sonho e de ilusão.

Ao recordar eventos e desencontros, que também são eventos, lembro uma tarde chuvosa o primeiro livro de Charles Dickens David Copperfield. Depois, prolongando-se no espaço e no tempo, o primeiro poema de Fernando Pessoa “Grandes mistérios habitam o limiar do meu ser”. E nisto, sem ele dar por isso, à primeira luz da madrugada, serenamente Álvaro de Campos tornou-se meu amigo.

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Fernando Carmino Marques é doutor em letras pela Universidade de Paris IV – Sorbonne. Publicou vários estudos sobre temas e autores portugueses e brasileiros, dos séculos XVI, XIX e XX. Traduziu e editou o estudo inédito de Pierre Hourcade sobre a poesia de Fernando Pessoa, A Mais Incerta das Certezas, Itinerário Poético de Fernando Pessoa (Coleção “Ensaios” sobre Fernando Pessoa, Tinta-da-china, Lisboa, 2016). Como ficcionista publicou Sobre outra coisa ainda (13 short stories) 2019 e Neste sonho que sou de mim, contos, 2021.
carmino@ipg.pt

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