Gente que Cuenta

O balde, o rodo, o divórcio – Ricardo Martins

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Ben Shahn
Byzantine Isometric, 1951

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Estava ajoelhado próximo ao balde. Num esforço para torcer o pano de chão.  Não queria nem muito encharcado nem muito seco.

Havia uma ciência nisso.

Em tudo há uma certa ciência.  A tal ciência que dá um verniz de valorização às tarefas cotidianas, comezinhas. Às tarefas automáticas. Que se realizam por meio de meia dúzia de sinapses. Sem que se perceba seu início, tampouco seu término.

Instalei o pano balanceadamente molhado-não-encharcado no rodo. Mas vou pular a explicação científica desse ato. Pouparei-te, caro leitor.

Ao me preparar para dar o primeiro impulso do rodo com o pano acoplado em sua ponta sobre o piso, ela se coloca à minha frente e declara:

– Quero o divórcio.

Assim,  sem ponto de exclamação. Como se pedisse para cortar 350 gramas de queijo numa padaria, enquanto olhava os pães sobre o balcão.

E eu, na posição para dar início à passada de pano no chão,  estanquei.  Meio que senti uma fisgada na região lombar, antes de o cérebro assimilar a comunicação feita.

O cérebro caminha de um jeito, dependendo da situação,  que se assemelha a bolas numa mesa de sinuca onde dois deficientes visuais jogam. Elas se chocam, rebatem e raramente entram na caçapa.

Tal cérebro me levou apenas a constatar, naquele momento, que ela estava pisando no chão molhado.  E com sapatos sujos.

Foi só no que pensei. Sapatos sujos no piso que estava terminando de limpar.

E ali estava eu. Meio encurvado, segurando um rodo acoplado a um pano nem muito encharcado, nem muito seco, ouvindo um pedido de … descasamento. E incomodado com o sapato sujo no chão em processo de limpeza.

Ela? Olhou com aquele olhar de 350 gramas de queijo e saiu. Sujando o chão.

Eu? Ao diabo com o balde, o rodo e o pano molhado não encharcado.

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Ricardo Martins, jornalista e pesquisador, com trabalhos para a Editora Abril, TV Cultura e Fundação Roberto Marinho.
ricardomarts@yahoo.com.br

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