Gente que Cuenta

Tanto me basta,
por Fernando Carmino Marques

Wayne Thiebaud Atril press
Wayne Thiebaud,
Filas del mostrador, 1990

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      A tua presença torna os meus dias menos amargos. Não resisto à momentânea felicidade do teu contacto. Tão agradável és que te procuro, sempre com aquele secreto desejo de poder saciar a minha insubmissa satisfação. Em silêncio, antecipo o prazer da tua companhia e entrego-me. Acariciando-te com o olhar sinto que me revigoras o sangue e trazes sol às minhas sensações. Todos os teus disfarces me seduzem. Todas as todas formas são minhas. Por vezes, um indomável som de felicidade abre a gaiola da garganta e solta onomatopeias de inefável êxtase.

Sei que me compreendes e te entregas como uma dádiva vinda não sei de onde. Como não quero que sofras com a humidade da casa, protejo-te na pequena lata em que está escrito o teu nome (prenda que a tia Júlia trouxe da viagem à Inglaterra).

Certo que nada pedes e tudo me dás, todas as manhãs verifico se te coloco na prateleira mais alta do armário. De forma alguma desejo partilhar-te com aquele teimoso carreiro de formigas que sem autorização me invade a cozinha. Nem sempre sei se me queres bem, pouco importa. Tanto me basta.

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Fernando Carmino Marques é doutor em letras pela Universidade de Paris IV – Sorbonne. Publicou vários estudos sobre temas e autores portugueses e brasileiros, dos séculos XVI, XIX e XX. Traduziu e editou o estudo inédito de Pierre Hourcade sobre a poesia de Fernando Pessoa, A Mais Incerta das Certezas, Itinerário Poético de Fernando Pessoa (Coleção “Ensaios” sobre Fernando Pessoa, Tinta-da-china, Lisboa, 2016). Como ficcionista publicou Sobre outra coisa ainda (13 short stories) 2019 e Neste sonho que sou de mim, contos, 2021.
carmino@ipg.pt

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